quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A escola precisa transformar-se cada vez mais em laboratório




Entrevista com Prof. Fernando Becker

IHU On-Line – A partir dos ensinamentos de Piaget e Paulo Freire,  é possível pensar em melhorias para a escola pública? Quais as sugestões dos autores para essa mudança?

Fernando Becker - A escola pública tem muito a aprender e a mudar. A coisa mais fundamental dessa aprendizagem é o seguinte: não se aprende porque se repete. Mas repete-se porque se aprendeu. A repetição só é legítima quando se compreendeu um conteúdo qualquer. A escola continua cometendo esse equívoco de achar que a repetição, por si só, produz aprendizagem, mesmo quando se repete algo que não se compreendeu. Esse equívoco custa muito caro, pois despende as preciosas energias dos alunos que poderiam agir, cada vez com mais autonomia, sobre os conteúdos, potencializando sua aprendizagem, e do professor que as despende com arroubos disciplinares – controle de comportamento –, pois os alunos não suportam repetir o que não lhes faz sentido. Por outro lado, a verdadeira aprendizagem escolar deveria visar o aumento da capacidade de aprender, tão importante nos dias atuais, em não apenas acumular conteúdos; conteúdos freqüentemente inúteis.

Além disso, a escola pública poderia pensar em tentar conjugar, na prática pedagógica e didática, outros verbos, além do verbo repetir, para redefinir sua função didático-pedagógica: fazer, compreender, criar, inventar, sentir, abstrair, experienciar, transformar, desafiar etc. E, inspirada no pensamento de Paulo Freire, conjugar verbos como buscar, indagar, intervir, escutar, dizer, falar, pensar, perguntar, dialogar, mudar, transformar, pesquisar, conscientizar-se, refletir a prática, ousar o novo etc. Só isso já provocaria uma mudança de perspectiva.

IHU On-Line – Qual é a contribuição da obra de Piaget para o estudo da socialização, do simbolismo e da afetividade humana? Em que sentido isso se relaciona com a educação?

Fernando Becker - Além de ter sido professor de Sociologia, na Universidade de Genebra, Piaget escreveu Estudos sociológicos. Nesse livro, afirma que a sociedade não é a soma de todos os indivíduos, mas a soma de todas as relações entre todos os indivíduos. Podemos tirar daí uma conclusão no mínimo perturbadora para o educador: a enorme responsabilidade, positiva ou negativa, que recai sobre o indivíduo enquanto sujeito de relações, no interior de uma sociedade.
Além de várias obras geniais, Piaget escreveu uma que por si só poderia dar-lhe o título de gênio: A formação do símbolo na criança: imitação, jogo, sonho, imagem e representação (3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1978). Lamentavelmente, Vygotski  não conheceu essa obra magistral, pois morreu doze anos antes de sua publicação. Acredito que, se ele tivesse conhecido essa obra, teria se transformado num admirador incondicional de Piaget.

Piaget escreveu também vários textos sobre psicanálise, abordando a questão da afetividade humana, que ele considera a energética das estruturas cognitivas. Sua teorização tem o poder de unificar as duas grandes dimensões constitutivas do sujeito: a cognição e a emoção.

Todos esses aspectos relacionam-se direta e intimamente com a educação. Na medida em que a educação age diretamente sobre a capacidade ativa dos indivíduos, ela redesenha o mapa das relações entre os indivíduos, refazendo o mapa das relações sociais, relações simbólicas constituídas no seio das culturas e, como tais, carregadas de afetividade ou emoção. Ou seja, ela poderá reconfigurar a cultura e a sociedade. Uma educação assim pensada, à base do pensamento de Piaget, fará surgir indivíduos autônomos cujas ações desafiarão a sociedade a produzir, nela mesma, profundas transformações.

IHU On-Line – O senhor disse certa vez que os professores precisam perceber que nada de significativo irá acontecer enquanto eles não romperem com as concepções de conhecimento e de aprendizagem que vigoram nas escolas. O senhor já percebe uma mudança de paradigma positiva nesse sentido? Quais os grandes desafios dos professores do século XXI?

Fernando Becker - Com certeza, a escola tem produzido transformações significativas nessas duas últimas décadas. É claro que estamos muito distantes dos sonhos que sonhamos. Mas os sinais são animadores. E a quantidade de pesquisas feitas em nossos mestrados e doutorados em educação, nas mais diferentes áreas de conhecimento, e as iniciativas transformadoras de práticas escolares que ocorrem em muitos lugares, em todos os níveis de ensino, constituem marcas muito claras de que há algo acontecendo.

O grande desafio do século XXI, pelo menos do início deste século, é o de transformar o ensino na medida do processo de aprendizagem, e esta na medida do processo de desenvolvimento do conhecimento humano. A atividade da escola deve transformar-se a partir do princípio de que o aluno é um centro de atividade, e não um receptáculo vazio a ser preenchido de conteúdos, freqüentemente sem sentido. Simplificando, a escola precisa transforma-se cada vez mais em laboratório, e ser cada vez menos auditório. Os agentes dessa transformação são, em primeiríssimo lugar, os professores. Isso demanda uma formação docente de grande envergadura. O professor precisa aprender a ensinar pela atividade do aluno. O aluno que não age sobre um conteúdo qualquer, não consegue aprender esse conteúdo, muito menos transformar sua capacidade de aprendizagem, ampliando-a. Isto é, uma escola ativa não só ajuda o aluno a aprender, mas a se desenvolver, isto é, a aumentar sua capacidade de aprender; ou, como lembra Piaget, a aprender a aprender. Aliás, Piaget tem muito a dizer para esse processo de formação docente.

Becker é graduado em Filosofia, pelas Faculdades Anchieta de São Paulo, e especialista em Lógica e Metodologia Científica, pela Unisinos. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), cursou mestrado em Educação, e, na Universidade de São Paulo (USP), concluiu doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano